Elvira Drummond: “Música para mim é plenitude”.
Por Rosangela Lambert
“Sem afinar os sentidos, não afinamos o pensamento”. Quem diz isso é Elvira Drummond, escritora, compositora e educadora musical. Autora que atingiu a impressionante marca de quase 300 títulos publicados, Elvira nos fala nesta entrevista sobre como a música entrou em sua vida, da importância de se fazer do ato de se criar um hábito, dos autores que norteiam seu pensamento pedagógico, e ainda nos propõe uma reflexão sobre o contexto, rumos e necessidades da educação musical no Brasil.
Uma inspiradora demonstração de sensibilidade e conhecimento por parte de uma das maiores educadoras musicais em exercício no Brasil!
Pergunta: Elvira, conte-nos como a música surgiu em sua vida e em que momento descobriu-se uma educadora.
Elvira Drummond: Venho de uma família em que o gosto pela música é passado de geração a geração… Minha avó, alemã, formou-se pianista, na Itália; meu pai tocava piano com desenvoltura, muito embora não fosse essa sua profissão. Vem dele minha paixão pela música e pela literatura, porque tive uma infância embalada com essas duas fantásticas expressões artísticas. Eu e meu pai dialogávamos melodias, utilizando o recurso do piano a quatro mãos. Com ele, tive as primeiras noções de harmonia, da forma mais lúdica e intuitiva possível — aprendi harmonia farejando possibilidades!… Embora meu pai tenha falecido quando eu tinha apenas 10 anos de idade, convivemos o suficiente para que guarde dele doces lembranças e preciosas lições de vida e de arte. Cedo concluí o curso técnico de piano e, com 16 anos, iniciei o magistério na categoria de professor-monitor (uma espécie de “estágio supervisionado”), no Conservatório de Música Alberto Nepomuceno — escola em que me formei. Dessa oportunidade, floresceu o enorme prazer de compartilhar saberes e experiências, e descobri o encanto de conduzir uma sala de aula!
Pergunta: Autora de cerca de, aproximadamente, 200 títulos, divididos entre os catálogos de Formação Musical, Práticas Instrumentais e Literatura Infantil, mais que uma educadora, você tornou-se uma “educadora-compositora-escritora”. Como isso aconteceu?
Elvira Drummond: Apesar de não ter formação pedagógica, meu pai manteve comigo um procedimento didático surpreendente, estabelecendo uma conduta pedagógica ousada, livre, lúdica e intuitiva. Numa época em que se priorizava a leitura de partituras, freando a habilidade natural de “tocar de ouvido”, meu pai ignorou tal aspecto e usou o recurso “tocar de ouvido” em função de desenvolver a acuidade e desempenho auditivo, fazendo para isso uso do piano. Estimulou de maneira enfática minha capacidade de expressão, em ambas as linguagens (literária e musical), de modo que, desde a infância, experimentei pequenas criações, tanto na área da música como na área de literatura. As invencionices literárias e musicais viraram meu brinquedo favorito. De brincadeira passaram a recursos didáticos, tão logo assumi a função de conduzir uma sala de aula. A criação é um exercício de liberdade e, com o tempo, vira hábito — melhor dizendo: vira vício! É raro o dia em que não escrevo uma canção, uma história, um arranjo ou um versinho… O ato de criar tem uma faceta de moleque travesso: cutuca, pinica e esperneia até cedermos aos seus encantos! Penso que passei a vida me divertindo, mas as pessoas nem desconfiam! (Imaginam que só trabalho!)
Pergunta: Sua proposta pedagógica foi inspirada em alguma escola ou método ativo de educação musical?
Elvira Drummond: Adoro ler e, com isso, fui abrindo diversas janelas do conhecimento humano que me serviram de respaldo para a escrita. Além dos vários pedagogos musicais (Dalcroze, Willems, Orff, Kodály, Schafer, dentre outros), pesquisei em áreas afins, ou seja, no campo da psicologia, filosofia, sociologia, antropologia e pedagogia (com destaque para o processo de letramento). Vale ressaltar o fato de que, indiscutivelmente, aprendi mais música quando saí dela, isto é, pesquisar outras áreas de conhecimento ampliou meu campo de visão do próprio discurso sonoro, ou seja, a articulação da música com outros saberes e linguagens artísticas propiciou uma ótica diferenciada sobre a própria música. Cito, aqui, alguns teóricos que muito influenciaram meu trabalho: Piaget, Vygotisky, Wallon, Freinet, Montessori, Rousseau, Gardner, Steven Pinker, Sócrates, Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Descartes, Adorno, Bachelard, Foucault, Levi-Strauss, Antoine Compagnon, Joseph Campbell, Mircea Eliade, Otto Maria Carpeaux, Mário de Andrade, Kurt Pahlen, dentre outros.
Pergunta: O que você acredita ser fundamental no ensino de música nas escolas?
Elvira Drummond: A música nas escolas de ensino básico precisa partir de uma experiência significativa para as crianças. E nada é mais significativo que cantar, tocar e expressar-se através dos sons, porque música é vida, e vida é movimento… Somente através de uma prática relevante, elementos constitutivos do discurso sonoro, tais como sentido de pulso, fraseio, motivos, ostinatos e noções de morfologia musical serão, naturalmente, absorvidos pelas crianças e jovens. Considero improdutivo o foco em elementos da teoria musical, que não sejam sugeridos pela própria experiência prática — uma decorrência do fazer musical. Afinal, a teoria existe para explicar a prática, e não o contrário. Importante destacar que, com as novas descobertas da neurociência, constatamos que a música ativa diversas áreas cerebrais, intervindo de maneira positiva no desempenho geral da criança; a prática musical traz benefícios nas áreas cognitiva, motora, inventiva, social, emocional… Mas o que acredito que de melhor a música faz pelo ser humano é cultivar a beleza. Aqui, caberia a pergunta: “Pra que serve cultivar a beleza?” Em termos práticos, eu diria que contribui para o desenvolvimento do senso estético. Um bom trabalho musical nos dá ferramentas e meios para se apreciar com critério uma obra de arte; em termos subjetivos, filosóficos, eu diria que a música, sobretudo, engrandece o espírito, nos dá a sensação de plenitude. Música para mim é plenitude!
Pergunta: O ensino de música ainda é pouco valorizado pela sociedade e as escolas não investem para que o professor tenha recursos pedagógicos adequados. Além disso, seus conteúdos não são organizados de maneira integrada. Neste contexto desfavorável, o que você diria ao professor que deseja fazer um trabalho musical de qualidade?
Elvira Drummond: Um professor precisa, sobretudo, de duas ferramentas indispensáveis ao seu trabalho: sede de pesquisa e sensibilidade. Seu empenho em procurar conhecer o conteúdo de sua matéria, somado ao olhar sensível, aponta o melhor caminho para apresentá-lo à criança. A pesquisa abre a janela do conhecimento; a sensibilidade aponta a estratégia adequada para que a criança receba o “pacote” da melhor maneira. Um bom material de apoio pode ajudar, mas não basta ter acesso a bons materiais, é preciso saber como utilizá-los.
E levando em conta que a relação professor/aluno é única — cada turma é cada turma; cada aluno é cada aluno — cabe ao professor descobrir a melhor maneira de explorar o conteúdo necessário com seu grupo de alunos. Já vi livros maravilhosos, recheados de ricos conteúdos, usados de modo totalmente inadequado, ignorando a faixa etária e algumas estratégias didáticas que fazem absoluta diferença na aprendizagem e interesse do aluno. A batuta do maestro e a varinha de condão pertencem ao mesmo “naipe”, operam a mesma magia… Ambas, batuta e varinha, saem por aí, milagrando a vida e fazendo do nada surgir o inusitado! Professor de música tem um pouco de mágico e de fada, porque opera com o imaginário, mexe com o pensamento e as emoções — as proezas melódicas são, naturalmente, invisíveis aos olhos, porque música não se vê, apenas se ouve e, principalmente, se sente!
Pergunta: Educação Musical no Brasil: uma realidade possível ou utopia?
Elvira Drummond: Acreditar na arte é acreditar na força do bem e do belo. A beleza é o alimento do espírito (para mim, questão de sobrevivência!). Períodos de maiores e menores adversidades viveremos sempre, mas nós, seres humanos, podemos perder tudo na vida, menos a esperança e a capacidade de sonhar. A realidade é feita de sonhos que deram certo. O mundo real foi sonhado, antes de existir… Portanto, desistir do sonho, jamais! Vale ressaltar que a palavra esperança é própria de quem pratica o verbo “esperançar”, e não “esperar”… A espera é passiva; a esperança é ativa. Esperar implica aguardar acontecimentos que não dependem de você. Esperançar significa ter atitude positiva diante de nossa conduta, em que resultados são consequências… Para concluir nossa conversa, preciso frisar que é impossível viver sem música e sem poesia, porque, colando de Ferreira Gullar, “a arte existe porque a vida não basta”.
Para acompanhar o trabalho de Elvira Drummond, siga sua página no facebook ou, então, acesse o site www.elviradrummond.com.br.
Publicado originalmente no blog Terra da Mûsica.