Meu relato de memórias

por Rosangela Lambert

Talvez por sua complexidade e importância, a memória é uma das funções neuropsicológicas mais estudadas em diferentes campos científicos. São envolvidos diversos processos de recepção, arquivamento, recordações, informações e identidades. Os nomes técnicos também são muitos: memória de curto prazo, de longo prazo, explícita, implícita, episódica, semântica, de procedimento… Sem dúvida, um “lugar” multifacetado.

E o que dizer da memória do coração? Será que ela existe? Uma memória que dispensa nomes técnicos ou explicações racionais para nos fazer chorar, suspirar, lamentar, sorrir, desejar, sentir, aprender, conhecer, viver! Eu a chamo de “memória do eu”. Rica de sentidos, significados e subjetividades, a ela está atrelado todo o meu eu: quem eu fui, quem eu sou e quem eu serei. Na “memória do eu” tudo é permitido: caixas de sapatos[1] que guardam fotos velhas, cheiro de café passado no coador de pano, barulho de trem, muitas histórias, também objetos concretos, cujos valores não são possíveis de se mensurar. Tudo lá, misturado a lembranças, esquecimentos e silêncios.

Existem fatos da “memória do eu” que compartilhamos com os outros, ou porque escolhemos ou porque escolheram por nós. Alguns esquecemos, que pena… foram tão bons! Outros ainda lembramos, mesmo desejando esquecer. Outros nem ousamos dizer! Melhor calar. Às vezes nos cabe decidir o que vai para a caixa de sapatos e o que não vai.

Uma de minhas importantes “memórias do eu” leva-me a uma tarde de sábado. Eu estava assistindo a um programa de televisão quando vi, pela primeira vez, uma pessoa tocando um instrumento enorme, preto, com muitas teclas, brancas e pretas. Seus dedos deslizavam de forma magnífica, de tal modo que meus olhos ficaram estatelados! Pianista e piano, numa perfeita simbiose, hipnotizaram-me por completo. Eu devia ter meus sete ou oito anos. Lembro-me que me perguntei: “como ele sabe tocar se não há números ou cores?” Realmente espantoso!

Nem me passou pela cabeça que “aquela coisa linda” pudesse ser para mim. Imagina, uma menina simples, a terceira filha de um casal batalhador. Meu pai, técnico em Contabilidade, trabalhava no Mercado Municipal de São Paulo, saía de casa de madrugada. Minha mãe, dona de casa, esmerava-se nas costuras, nas comidas e no cuidado com a família.

Tivemos poucos brinquedos, mas brincamos muito! Nas férias ou depois da escola, meu irmão (meu parceiro de aventuras) e eu ganhávamos a rua, sem saber o que estaria por acontecer. Talvez encontrássemos uma obra em construção para explorar ou tocaríamos algumas campainhas e correríamos muito. Nos fins de tarde meu lugar preferido era a cozinha, perto de minha mãe, conversando, ajudando em algo para o jantar e ouvindo rádio. Nossa, como eu torcia para que tocassem minhas músicas preferidas!

Tive alguns “brinquedos-musicais”: piano com oito teclas coloridas, cítara e flauta doce. Eu tocava do meu jeito, mas em minha imaginação, outro lugar onde tudo é permitido, eu tocava lindamente. Tive também algumas fitas K-7 do pianista Richard Clayderman e gostava de ouvir sozinha, sem ninguém por perto, para que nada, nem ninguém, pudesse atrapalhar minha viagem!  Eu fechava os olhos e o que via eram minhas mãos deslizando no teclado do piano! Ah, meu coração chegava a arder – e a doer, marcado pelo desejo de tocar!

Interessante que uma outra importante “memória do eu” leva-me novamente ao sábado, mas desta vez, de manhã. Minha mãe e eu estávamos indo à feira (eu não gostava, pois precisava carregar sacolas pesadas na volta!), quando, de repente, meus olhos leram uma placa que achei linda: “Leciona-se piano”. Eu tinha onze anos. Nem consegui dormir naquela noite. Contudo, foi preciso esperar quase um ano até que meu pai dissesse um sonoro “sim”. Desde então e até hoje, o piano ocupa lugar de destaque na minha vida.

Foram muitos e muitos anos de dedicação, entrega e sonhos, misturados a sentimentos e experiências, nem sempre harmoniosos. Essas “memórias do eu” prefiro chamar de “memórias pianísticas do eu”, porque são um capítulo à parte. Ou melhor dizendo, estão em outra caixa de sapatos. Muitas dessas lembranças – e esquecimentos, me vêm à mente de forma circular e espiralada, numa temporalidade um tanto nebulosa, mas não tenho dúvidas que essas caixas são as mais valorosas e ricas de conteúdo que me constituem, pois comecei menina e só pretendo encerrar este arquivo quando der meu último suspiro. Estão em constante construção e reconstrução. De forma metafórica, assemelham-se à música, arte do tempo, de algo que é e deixa de ser no mesmo instante.

Na ocasião do vestibular aconselharam-me a estudar Ciências Contábeis, assim teria um “emprego garantido” em algum Banco ou empresa, afinal, quem poderia viver de música? Lá fui eu. Trabalhando durante o dia, estudando à noite, “pianar” só aos sábados e domingos, os dias mais esperados da semana!

De fato, eles tinham razão: tive ótimos empregos. Trabalhei em uma multinacional de auditoria e em um importante Banco, também multinacional. Foram doze anos de muito aprendizado, luta e labuta! Paralelamente a esta vida de tailleurs e sapatos de salto alto, o piano esteve sempre ao meu lado.

A vida seguiu e foi preciso mais caixas de sapatos para armazenar novos arquivos de “memórias do eu”: o casamento, a maternidade e a alforria! Com o nascimento de minha filha decidi virar a mesa: não voltaria ao mercado financeiro e me tornaria professora de Música. A notícia chocou colegas de trabalho, parentes, amigos e até meu esposo, porém nada me deteria.

No início de 2007, quando minha filha completou seis meses, iniciei a Licenciatura em Educação Artística com Habilitação em Música e, no início do terceiro ano da graduação, com muitas borboletas no estômago, dei minha primeira aula para uma turma do 5º Ano. Foram três anos nesta escola, atuando como uma “professora-aluna”, pois estava aprendendo a arte de lecionar. Em 2011 consegui uma vaga para um projeto que atendia crianças vulneráveis, no colégio Salesiano Santa Teresinha. À esta altura já estava apaixonada pelo magistério! Dedicada, mergulhei de corpo e alma neste “novo mundo”.

Em pouco tempo conquistei a confiança de minha gestora que, seis meses após minha contratação para o projeto, ofereceu-me muitas aulas do colégio, onde atuo como professora de Música desde 2011. Não parei mais de estudar. Busquei aprofundar meus conhecimentos sobre a pedagogia musical, cursei uma especialização em Educação Musical, além de diversos cursos e realização de leituras, aulas de violão, pandeiro, flauta doce e canto. Foram necessárias mais caixas de sapatos!

Em meados de outubro de 2015, estava na escola para viver o que seria mais um dia comum de trabalho, porém, algo imprevisto aconteceu. Recebi a visita de uma musicoterapeuta – “musicoque?” em minha sala de música. Ela queria conversar sobre alguns alunos autistas, seus pacientes. Tenho certeza de que também fui um imprevisto no seu dia, pois quando ela pensou que já estava de saída, eu a bombardeei com muitas perguntas sobre sua profissão.

Apaixonada pela música, pela infância e pela pedagogia, eu acreditava que nada mais faltava para minha realização, contudo eu estava enganada, mal sabia que algo estaria para acontecer, colocando em xeque este triângulo amoroso, que passaria a ser um quarteto. Pois é, esta novidade anunciava o prelúdio de minha nova paixão: a Musicoterapia. Assim, no ano de 2016 ingressei, com o coração em festa, no curso de especialização em Musicoterapia. Seria preciso organizar mais caixas de sapatos!

No finalzinho do curso da pós, mais um grande imprevisto: comecei a atuar, de forma totalmente impensada, em uma ILPI – Instituição de Longa Permanência de Idosos. Foram seis meses de muito aprendizado e muito amor, e aquele triângulo amoroso, que virou quarteto, a paixão pela música, pela infância, pela pedagogia, pela musicoterapia, passaria a ser um quinteto: agora com a Gerontologia.

Atuei também em Centro Dia para idosos e comecei a entender que a velhice é plural. Dei-me conta que os idosos da ILPI eram completamente diferentes dos idosos do Centro Dia. Senti que era momento de buscar mais conhecimento e ingressei em uma especialização em Gerontologia. Como dizem, uma coisa puxa outra, e após finalizar este curso, comecei outro: especialização em Neuropsicologia Interdisciplinar.

Quem me acompanha sabe que não paro e, cutucando aqui e ali, acabei por “arrumar um emprego no meu emprego”. Descobri, por acaso, que no complexo que trabalho, poderia atuar na Unisal com os idosos no Programa Idade Ativa. Para minha felicidade, lá estou desde 2017, atuando como musicoterapeuta na área preventiva. À esta altura, certa de que era momento de degustar todos estes saberes e sabores que eu vinha conquistando, a possibilidade do mestrado bate à minha porta. Será que vou? Sim! Com gratidão e muita alegria, concluí o mestrado em Educação no final de 2021.

Ao olhar para trás, vejo-me de posse de um verdadeiro arsenal de caixas de sapatos, que mal fecham, de tão cheias que estão. A gratidão enche meu coração. O sonho daquela menina, que ficou maravilhada ao ver aquele instrumento enorme, preto e repleto de teclas, foi realizado. Permita-me corrigir: o sonho daquela menina está sendo realizado.

Aquela menina ainda mora em mim. Que bom! Ela nasceu para amar a música. Está sempre pronta para realizar novos sonhos e fartar mais caixas de sapatos! Essa é minha ladainha, minha música, meu leitmotiv.

Minha caixa de sapatos[1] (livros de piano desde minha meninice)

[1] Termo usado ao longo do texto para representar, de forma simbólica, arquivo de lembranças e esquecimentos de memórias pessoais.