SOS! NOSSO FOLCLORE EM PERIGO…
Por Elvira Drummond
Conversando com colegas professores, fui informada de algumas condutas questionáveis, que não me parecem suficientemente esclarecidas.
Falo sobre o acervo folclórico infantil, que tem sido banido das escolas sob a alegação de por em risco a moral e os bons costumes. Ouvi relatos curiosos, que apontam para a negação de fatia significativa do repertório folclórico — acervo cultural que, por séculos, alimenta o imaginário infantil e norteia a conduta humana, tendo como base princípios que atravessaram milênios e que são matrizes de rituais de sociedades primitivas, de relatos bíblicos e de monumental legado artístico da humanidade.
A lista de canções e histórias varridas das salas de aula vem crescendo, assim como a severidade no tocante ao seu uso, sendo tal prática expressamente proibida em algumas escolas.
A versão didática de “Atirei o pau no gato” escolhe exatamente o momento da brincadeira para dizer que não devemos maltratar os animais. Os versos, no formato “politicamente correto”, conseguem roubar a brincadeira infantil que traz um elemento dos mais interessantes e significativos para o desenvolvimento da criança: a oportunidade da catarse (que se encontra no final da canção) — situação que só é possível com a simulação do berro do gato, sendo esse vivenciado com muita expectativa pela criançada, que se lança alegremente ao chão representando o próprio bichano. Vale ressaltar que, no momento catártico, a criança faz o papel do gatinho e não de quem atira o pau no gato, porque a transmutação do imaginário faz parte do universo infantil. O que conta na brincadeira é a euforia da queda e a movimentação cantada junto ao grupo.
Na lista proibitiva estão cucas, tutus, boizinhos e outros seres que permeiam a fantasia, todos eles vinculados à anunciação do perigo. Trata-se de outro lamentável corte, uma vez que, segundo Marc Soriano, filósofo francês do século XX, é através da personificação do mal em personagens assustadores, que dizemos à criança que o mundo é perigoso. E, sob o manto protetor do canto, a criança adormece certa de que conta com o amparo da voz acolhedora que canta para protegê-la dos perigos mundanos.
Marc Soriano denomina de Pedagogia do Medo essa forma doce de proteger as crianças, advertindo-as, dentro do requadre lúdico da fantasia, de que os perigos existem e que exigem cautela. Mas o ato de cantar ou contar história para a criança é, por si, um recado explícito de que a figura protetora do adulto que a ama encontra-se ali para protegê-la.
Ingressou na lista proibitiva uma joia do nosso acervo folclórico: a canção “A linda rosa Juvenil” — uma versão cantada e enxuta da história “A bela adormecida” (o que, provavelmente, envolve a exclusão simultânea da história). Herança dos trovadores da Idade Media, essa canção oportuniza a expressão dramática dos pequenos, que, em cenas compactas, contam uma história conduzida pelo canto, o que favorece também a expressão musical e a interação do grupo (com funções e espaços previamente distribuídos entre eles).
Qual o motivo da exclusão? O beijo do príncipe — manifestação de amor que tem o poder de despertar a princesa — é considerado assédio, nessa visão que ignora todos os estudos sobre a importância dos contos de fada na formação da criança. Cabe destacar que tais estudos envolvem as áreas de antropologia, sociologia, etnologia, psicanálise, dentre outras. Os autores (que se encontram na bibliografia fornecida logo abaixo) contam com o reconhecimento de países da Europa, América do Norte, América do Sul, abraçando toda a cultura ocidental.
Acho relevante ressaltar aqui a importância que o folclore tem na formação das crianças nas escolas europeias, por exemplo. A educação musical abre um espaço considerável para a vivência e resgate das tradições, como forma de preservar a identidade cultural de cada nação.
Não reconheço nessas proibições a voz da criança… Ouço a voz de um adulto cuja mente foi contaminada pelo medo, vendo perigo em tudo e varrendo, de maneira atabalhoada, o território lúdico da vida das crianças. Estaria nossa sociedade doente? Acometida de tantos receios que carrega um olhar distorcido?
É necessário que, urgentemente, se reveja essa medida proibitiva, que retira da criança o direito ao repertório de brincadeiras e folguedos populares. Com isso, não apenas intervém na preservação do nosso perfil cultural, como eliminam possibilidades valiosas da contribuição folclórica para o desenvolvimento saudável das crianças.
REFERÊNCIAS:
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
BRUNEL, Pierre. Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: José Olímpio; Brasília: UNB, 1997.
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1999.
FROMM, Erich. A linguagem esquecida. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.
NERO, Carlos del. Acalantos e cantigas de um folclore tenebroso. São Paulo: Revista dos Arquivos Municipal, vol. 171 — separata [s/d].
NETTI, Paul. La música e la danza. Buenos Aires: Espasa-Calpe, 1945.
PROPP, Vladimir. A morfologia do conto. Lisboa: Vega, 1992.
RODARI, Gianni. Gramática da fantasia. São Paulo: Summus, 1982.
SORIANO, Marc. Les contes de Perrault. Paris: Gallimand, 1968
STEWART, R. J. Música e psique. São Paulo: Círculo do Livro, 1981.
WARNER, Marina. Da fera à loira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
WILLEMS, Edgar. As bases psicológicas da educação musical. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1970.
WOLFFENBÜTTEL, Cristina Rolim. Cantigas de ninar de todo o mundo. Porto Alegre: Ed. Magister, 1995.
Elvira Drummond é escritora, compositora e educadora musical. Autora que atingiu a impressionante marca de quase 300 títulos publicados. Visite o site:
Excelente Elvira, ótima reflexão. É um absurdo, com certeza.
Absurdo.Ate os personagens do imortal Monteiro Lobato estão sendo excluídas do nosso folclore,Só falta excluir as canções infantis de Villa Lobos.