Koellreutter e a música como estímulo à reflexão
Por Rosangela Lambert
Hans Joachim Koellreutter (1915-2005) nasceu em Freiburg, Alemanha. Sua paixão pela música surgiu quando, aluno rebelde, com notas ruins na escola, foi proibido de sair às ruas. Ele conta:
“[…] Não podia brincar, nem conversar com ninguém… só podia estudar. Tinha apenas 12 anos […] enquanto brincava com as coisas dos armários, descobri uma flauta militar, vertical, como flauta doce – um instrumento austríaco… […] Quando saí da ‘prisão’ resolvi que ia ser músico”.
Entre 1934 e 1936, estudou composição na Academia Superior de Música de Berlim e flauta no Conservatório de Música de Genebra, na Suíça. Ainda jovem, conquistou a admiração e o respeito do público como flautista de concerto.
Em 1937, ao ficar noivo de uma moça judia, desagradou sua família, que simpatizava com o nazismo e o denunciou à Gestapo, polícia secreta da Alemanha nazista. Por isso, ele exilou-se no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, onde conheceu amigos como Heitor Villa-Lobos e Mário de Andrade. Em 1938 tornou-se professor do Conservatório Brasileiro de Música.
Em 1939, organizou, ao lado de jovens compositores, intérpretes, musicólogos e professores, o movimento “Música Viva”, cujas propostas eram cultivar a música contemporânea de todas as tendências, considerada como expressão da época; promover uma educação musical ampla, revendo conceitos e posições doutrinárias e lutar pela liberdade e pela criação de novas formas na música brasileira.
Em 1940, ajudou a fundar a Orquestra Sinfônica Brasileira, onde foi o primeiro flautista. Naturalizou-se brasileiro em 1948. Na década de 1950 atuou como professor nos “Cursos Internacionais de Férias de Teresópolis”, Rio de Janeiro, nos “Seminários de Música da Pró-Arte”, em São Paulo, e nos “Seminários Internacionais de Música”, em Salvador. Destas experiências pedagógicas surgiram propostas de oficinas de música, ligadas à experimentação e criação musical.
Em 1962 regressou à Alemanha e, logo em seguida, viajou para a Índia e Japão, dedicando-se por treze anos ao estudo da música oriental. De volta ao Brasil em 1975, atuou como diretor do Conservatório Dramático e Musical de Tatuí, em São Paulo, e foi professor visitante do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP).
Em 1985 fundou o “Centro de Pesquisa em Música Contemporânea”, da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde atuou como diretor e professor de Estética, Análise, Composição Musical e Pedagogia.
O objetivo da Educação Musical
Como artista e educador, Koellreutter jamais considerou a educação musical apenas um meio para a aquisição de técnicas e procedimentos necessários à realização musical. Sua abordagem privilegia a importância da música na vida humana; para ele, a música é um instrumento de educação. Ele explica (1998):
“Aquele tipo de educação musical não orientado para a profissionalização de musicistas, mas aceitando a educação musical como meio que tem a função de desenvolver a personalidade do jovem como um todo; de despertar e desenvolver faculdades indispensáveis ao profissional de qualquer área de atividade, como por exemplo, as faculdades de percepção, comunicação, concentração, autodisciplina, trabalho em equipe, ou seja, a subordinação dos interesses pessoais aos do grupo, as faculdades de discernimento, análise e síntese, desembaraço e autoconfiança, a redução do medo, o desenvolvimento da criatividade, do senso crítico, do senso de responsabilidade, da sensibilidade, da memória e, principalmente, o desenvolvimento do processo de conscientização do todo, base essencial do raciocínio e da reflexão. […] O humano, meus amigos, como objetivo da educação musical.”
Proposta Pedagógica
Koellreutter é sem dúvida um dos grandes nomes da educação musical brasileira, tendo influenciado e congregado um grande número de alunos-professores à sua volta. Ele sempre incentivou a capacidade inventiva de seus alunos, ensinando-os a “duvidar de tudo”, a ampliar seu leque de escuta, a improvisar e a criar. Ele dizia:
“Não acredite em nada que o professor diz; não acredite em nada do que você lê; não acredite em nada do que você pensa; em outras palavras, questione sempre.”
Em suas aulas a participação ativa, o debate, a elaboração de hipóteses, a análise crítica e o questionamento eram inerentes ao processo de ensino-aprendizagem. Ele era contra uma postura didática tradicional que se limitava a transmitir os conhecimentos herdados, consolidados e frequentemente repetidos. Propôs o ensino que chamou de “pré-figurativo” (1997):
“O ensino pré-figurativo das artes é parte de um sistema de educação que incita o homem a se comportar perante o mundo, não como diante de um objeto, mas como o artista diante de uma obra a criar. O ensino pré-figurativo orienta e guia o aluno, não o obrigando, porém, a sujeitar-se à tradição, valendo-se do diálogo e de estudos concernentes àquilo que há de existir ou pode existir, ou se receia que exista. Um sistema educacional em que não se ‘educa’, no sentido tradicional, mas, sim, em que se conscientiza e ‘orienta’ através do diálogo e do debate.”
Koellreutter acreditava que num ambiente de experimentação e diálogo, o aluno desenvolve-se de maneira integral e segura. Ele afirmava (1987):
“Não há coisa errada em música, a não ser aquilo que não se pode executar; errado é sempre relativo a alguma coisa; o errado absoluto em música não existe.”
Mas ele adverte:
“Não há nada que precise ser mais planejado do que uma improvisação. Para improvisar é preciso definir claramente os objetivos que se pretende atingir. É preciso ter um roteiro e, a partir daí, trabalhar muito: ensaiar, experimentar, refazer, avaliar, ouvir, criticar, etc. O resto é vale-tudismo!”
Outro ponto relevante de sua proposta pedagógica diz respeito à importância do professor despertar no aluno o desejo pelo saber, criando condições para desenvolver seu espírito criador. Ele disse (1997):
“A melhor hora para apresentar um conceito ou ensinar algo novo, é aquela em que o aluno quer saber. E o professor deve estar sempre atento e preparado para perceber e atender às necessidades de seus alunos. Não é preciso ensinar nada que o aluno possa resolver sozinho. É preciso aproveitar o tempo para fazer música, improvisar, experimentar, discutir e debater. O mais importante é sempre o debate, e nesse sentido, os problemas que surgem no decorrer do trabalho interessam mais do que as soluções.”
Jogos de Improvisação
Koellreutter desenvolveu 28 jogos, que chamou de “Modelos de Improvisação”. Trata-se de jogos criativos que propõem a vivência e a conscientização de aspectos musicais fundamentais, estimulando a reflexão e preocupando-se também em sugerir situações para o exercício de uma nova estética musical. Ele explica (1987):
“O centro da aula é a improvisação. Os modelos de improvisação contêm todo um programa de música. Eles são feitos de tal modo que, depois de cinco minutos, um dos alunos pergunta, por exemplo, qual a diferença entre pausa e silêncio. O professor só explica quando o aluno pergunta, e o aluno é motivado a perguntar através das improvisações. Atualmente são 28 modos de improvisação, e que contêm os meios expressivos de música, desde a Idade Média até os nossos dias.”
O Diagrama K (Wu-li): Planimetria e Metapadrão
Criado em 1990, trata-se de uma música experimental centrada na atuação do artista. Não é uma obra musical, mas um ensaio, no qual o artista ordena sua música de maneira a relacioná-la com a estética relativista e imprecisa proposta por Koellreutter. É uma projeção gráfica das partes significativas do trecho musical a ser criado e reforça a ideia de se fugir às regras estabelecidas pela academia, restando ao artista a opção da interpretação e o estudo pessoal de suas próprias referências.
Veja duas interpretações baseadas na proposta do Diagrama K:
Livros Publicados
Koellreutter não criou um método de ensino musical, ao contrário, ele afirmava:
“Meu método é não ter método. O método fecha, limita, impõe… e é preciso abrir, transcender, transgredir, ir além.”
No entanto, escreveu alguns livros: Harmonia Funcional, Terminologia de uma Nova Estética da Música, À Procura de um Mundo Sem Vis-à-vis, Nocturnos e Estética.
A educadora Teca Alencar de Brito, educadora musical, aluna e amiga pessoal de Koellreutter, publicou as obras Koellreutter educador: o humano como objetivo da educação musical (2001) e Hans-Joachim Koellreutter: Ideias de Mundo, de Música e Educação (2015).
E hoje, suas propostas são divulgadas e utilizadas?
Levando-se em conta as dimensões de nosso país, pode-se dizer que é pequeno o âmbito de alcance de suas propostas pedagógicas, tanto em escolas de música e conservatórios quanto na educação geral. Não se diminua, no entanto, a importância de seu legado.
Em 2006, Margarita Schack, viúva de Koellreutter, doou à Universidade de São João del-Rei (UFSJ) o acervo (partituras, manuscritos, correspondências, recortes de jornais e revistas, materiais fonográficos e objetos pessoais, entre outros) que daria surgimento à Fundação Koellreutter. https://ufsj.edu.br/koellreutter/koellreutter.php
Publicado originalmente no blog Terra da Música