Murray Schafer: os sons do mundo e a “conscientização sonora”
Por Rosangela Lambert
Raymond Murray Schafer nasceu em 1933, no Canadá. Quando criança estudou piano com a mãe e, na adolescência, ingressou no Royal Conservatory of Music, em Toronto, onde teve aulas de piano e cravo. Não chegou a completar seus estudos. Em 1956 mudou-se para a Alemanha e depois para a Inglaterra, onde estudou composição. Em 1962, voltou ao Canadá e trabalhou no Centro de Música Canadense. Em 1964, mudou-se para a costa oeste, iniciando um período intenso de pesquisa, docência e criação, na Universidade de Simon Fraser, onde ficou por cerca de dez anos. Dessa época datam os primeiros livros sobre educação musical.
Depois destes anos dedicados à vida universitária, Schafer resolveu se afastar e, após demitir-se de Simon Fraser, passou os dez anos seguintes em uma fazenda que comprara em Ontário, construindo sua própria casa. O novo ambiente, em que os sons naturais prevaleciam sobre os urbanos, influenciou não apenas sua pesquisa acadêmica, mas suas ideias acerca de educação musical, composição e o que ele chamou de paisagem sonora*.
Schafer passou a se dedicar apenas ocasionalmente ao ensino, ministrando cursos de curta duração em diversas partes do mundo, como professor convidado, porém seguiu como compositor de várias obras para orquestra, quarteto de cordas e canto coral.
Veja abaixo duas de suas obras como compositor:
Proposta pedagógica
Schafer acredita que a qualidade da audição é o centro de uma boa educação musical. Para ele, é fundamental a relação equilibrada entre o homem, o ambiente e as diversas possibilidades criativas do fazer musical, dando pouca importância ao ensino de teoria da música. Ele é, por essa razão, considerado um compositor/educador “polêmico” por compositores ou educadores musicais mais conservadores.
Suas atividades sonoro-musicais podem ser executadas dentro ou fora da sala de aula, quer como práticas incluídas dentro do currículo específico de música, quer como atividades extraclasse, com grupos de qualquer faixa etária e com ênfase em sons do ambiente. Ele não busca o ensino sistemático de música, ao contrário, busca uma conscientização sonora que pode contribuir para a qualidade da vida no planeta.
Schafer também acredita na importância do fazer musical criativo e em uma aula de música em que o aluno tenha espaço para expressar-se por meio dos sons e organizá-los como “sua” música. Neste contexto, fica evidente a importância da improvisação, buscando atingir a expressividade pessoal. Ele afirma que
“Na aula de música deve haver um lugar, no currículo, para a expressão individual; porém currículos organizados previamente não concedem a oportunidade para isso, pelo fato de seu objetivo ser o treinamento de virtuoses, e, nesse caso, geralmente falha. O principal objetivo de meu trabalho tem sido o fazer musical criativo, e embora seja distinto das principais vertentes da educação, concentrada sobretudo, no aperfeiçoamento das habilidades de execução de jovens músicos, nenhuma dessas atividades pode ser considerada substituta da outra. O que me interessa realmente é que os jovens façam a sua própria música, seguindo suas inclinações, conforme acharem melhor.”
Ele fundamenta seu trabalho em objetivos claros e bem definidos, buscando que seus alunos sejam capazes de ouvir mais e melhor, de criar mais e melhor e de superar a dicotomia que a escola moderna estabeleceu para as linguagens artísticas. Ele explica:
“Meu trabalho em educação musical tem se concentrado principalmente em três campos:
1. Procurar descobrir todo o potencial criativo das crianças, para que possam fazer música por si mesmas;
2. Apresentar aos alunos de todas as idades os sons do ambiente e tratar a paisagem sonora do mundo como uma grande composição musical, da qual o homem é o principal compositor; e fazer julgamentos críticos que levem à melhoria de sua qualidade;
3. Descobrir um nexo ou ponto de união onde todas as artes possam encontrar-se e desenvolver-se harmoniosamente.”
Assim, pode-se dizer que suas propostas pedagógicas são caracterizadas pela não linearidade, ou seja, a qualquer tempo é possível aplicá-las, reaplicá-las ou transformá-las, levando-se em consideração as necessidades, capacidades e interesses do grupo com o qual se trabalha, a fim de se atender a objetivos específicos.
“Meu método de educação musical é não linear. Os exercícios que se seguem não vão como ABCDEFG… todavia, acredito que eles constituem um alfabeto. A técnica é a de mosaico – uma pedra aqui, uma pedra ali – num modelo em constante expansão. Alguns exercícios são relacionados ao aperfeiçoamento técnico; outros à exploração criativa de sons.”
Schafer também propõe a superação acerca de possíveis rótulos e preconceitos sobre o que vem a ser música de boa qualidade, música adequada para as salas de aula ou música adequada para determinados grupos de pessoas:
“Temos uma tendência para associar certas manifestações artísticas a certas pessoas ou grupo de pessoas, e isso, sem dúvida, afeta a nossa apreciação. Imagino frequentemente se seria possível dissociar a música dos seres humanos e apreciá-la assepticamente em sua forma pura. Não creio que seja inteiramente possível. Mas acho que às vezes é necessário experimentar e ver por esse lado os nossos gostos musicais e desenvolvê-los para muda-los. Em outras palavras, deixem a música falar por si mesma, não por associações. Eu nunca seria tão cego e preconceituoso a ponto de me recusar a ouvir a parada de sucessos; vocês também não seriam a ponto de recusar-se a ouvir música d câmara. Música não é propriedade privada de certas pessoas ou grupos. Potencialmente, todas as músicas foram escritas para todas as pessoas.”
Limpeza de Ouvidos
Schafer criou um curso em sua estada na Universidade Simon Fraser chamado Limpeza de Ouvidos. Neste curso, ele abordou exercícios para a atenção minuciosa aos sons ouvidos em uma determinada paisagem sonora, classificando-os e selecionando-os e, a partir deles, os alunos criavam possibilidades musicais, improvisando ou compondo, quer imitando-os ou recriando-os. Por meios destes exercícios os alunos eram chamados à consciência de alturas, timbres, intensidades, durações, ritmos, texturas, formas, bem como da importância do silêncio.
Era possível trabalhar com ou sem grafia, a qual era utilizada de maneira não convencional.
“À medida que as tarefas se tornam mais elaboradas, chega o momento em que a escrita se torna inevitável, e então deixo que desenvolvam a sua própria, utilizando os meios que quiserem.”
Por uma “educação sonora”
Suas propostas seriam mais bem classificadas como propostas de educação sonora, ao invés de propostas de educação musical, uma vez que seu foco é essencialmente a qualidade da escuta, seja ela musical ou não.
Poderíamos dizer que o que ele propõe deveria anteceder e permear o ensino de música por promover um despertar para o universo sonoro, por meio de ações muito simples, capazes de modificar substancialmente a relação homem x paisagem sonora.
Para ele, qualquer coisa que soe pode transformar-se em música, e, dessa maneira, o simples bater de um martelo ou o tilintar de talheres durante um jantar podem ser música, isto é, se os sons forem organizados e intencionalmente utilizados. “A intenção faz a diferença”, explica Schafer.
Assim, até os ruídos considerados indesejáveis podem transformar-se em música ou em parte de uma obra musical. Schafer adverte, porém, que devido à grande quantidade de ruídos que ouvimos durante todo o nosso dia, passamos automaticamente a não percebê-los mais. No entanto, se atentos, nos daremos conta de que o “silêncio é ilusório; procure encontra-lo.”
Schafer lança seus alunos no universo sonoro de uma maneira nova, não esperada e convida-os a fazer música de maneira crítica e reflexiva. Ele afirma:
“Venho discutindo a educação dirigida à experiência e à descoberta. […] Em um trabalho criativo, de qualquer espécie, não há respostas conhecidas nem informação que possa ser examinada como tal. Depois de colocar algumas questões iniciais (não respostas), o professor se coloca nas mãos da classe e juntos trabalham inteiramente os problemas. […] É suficiente mencionar aqui que ao fazer “música” com folhas de papel, inventar nossa própria linguagem onomatopaica, colecionar sons em casa e nas ruas, improvisar em grupos pequenos, e ao elaborar todas as outras atividades, não fizemos nada que qualquer outra pessoa não possa também fazer, desde que tenha os ouvidos abertos. Essa foi a única habilidade exigida.”
Schafer no Brasil
Sua primeira visita ao Brasil foi em 1990, ocasião em que ministrou dois cursos, um no Rio de Janeiro e outro em São Paulo, ambos patrocinados pela Fundação Vitae. Em 1992, ele voltou, dessa vez ministrando cursos no Rio de Janeiro, em São Paulo, Londrina e Porto Alegre. Retornou ainda em 1998, em 2004 para o XIV Encontro Internacional do Foro Latino-americano de Educação Musical (Fladem) e em 2011 para o lançamento do livro Educação Sonora, tendo participado de encontros e workshops.
Livros publicados em português
– O Ouvido Pensante (UNESP, 2013, 2ª ed.)
– A Afinação do Mundo (UNESP, 2001)
– Educação Sonora (Melhoramentos, 2011)
*Paisagem sonora – do inglês “soundscape”, é composta pelos sons que compõem um determinado ambiente, sejam estes sons de origem natural, humana, industrial ou tecnológica.
Publicado originalmente no blog Terra da Música.
Muito preciosa essa leitura, recheada de informações que me estimulou a ter cada vez mais ouvidos abertos e poder fundamentar meu trabalho em objetivos claros e bem definidos, para cada vez mais descobrir o potencial criativo das crianças, conforme o texto mesmo explica. Quero compartilhar com a senhora um vídeo no youtube: “Musicalização – Paisagens Sonoras sobre obras de TARSILA DO AMARAL – uma viagem sonora”, que faz uma viagem pelas paisagens sonoras da pintora e os possíveis sons que teriam: a cidade,o campo, a fazenda, o brejo, o cais, a noite… que vem confirmar toda a informação dessa leitura. Obrigada por compartilhar essa leitura!
Olá Maria! Eu conheço o canal que indicou, realmente é muito bacana! AbraSONS!